16.12.1919 - 09.02.2007

Maria... foi sempre assim que a tratei e só nos últimos tempos a chamei de Avó. Quando nascemos (eu sou a segunda neta) sempre achou que era muito jovem para ser avó e portanto quando falava connosco era "A Maria faz isto...", "A Maria vai ali..." e portanto ficou sempre a Maria. Marie Belle como a minha Tia e as minhas primas a chamavam, por ser mesmo bela.

Nestes dois últimos dias o som que anda recorrentemente na minha cabeça é o das socas da Maria a subir e a descer as escadas. Eu morava mesmo por baixo e o meu quarto era o mais próximo das escadas e assim que eu ouvia os passos inconfundivéis lá subia as escadas a correr e lá ia tomar o pequeno-almoço. Foi assim durante anos e mesmo quando casei e fui morar para a mesma casa várias vezes acordei a sorrir com o mesmo barulho de sempre.

Os últimos quatro meses foram bastante duros, estar enfiada numa cama ou numa cadeira quando toda a vida se andou de um lado para outro e sempre a conjugar o verbo ir não é fácil. Em Outubro eu disse a chorar à minha Mãe "A Avó nunca mais vai sair da cama", saiu mas foi só para o sofá.

Nos últimos dias tudo aconteceu calmamente e acho que nos ajudou termos sido nós, as netas, a tratar de quase tudo. Na Quinta-Feira à tarde era visível que faltariam algumas horas e ficamos por lá e fazer-lhe festinhas e a mimá-la. Na Sexta-Feira à hora de almoço caiu mais uma má notícia, o Avô tinha entrado em coma. Segui imediatamente para casa e lá fiquei até o corpo sair para a capela.

Tal como acontece sempre, apesar de ser um momento de muita tristeza, é, muitas vezes com piadas e parvoices que o ambiente se vai tornando suportável. Foi assim quando eu disse totalmente inconsciente que "Os benfiquistas na nossa famíla estão em extinção"... a maior benfiquista de todas tinha acabado de fechar os olhos e eu nem me apercebi do que tinha dito... valeu a gargalhada que demos.

Eram 16h quando a respiração cessou de vez. Eu estava mesmo ali a segurar-lhe na mão. Durante alguns minutos todos perdemos um pouco o norte mas depressa nos recompusemos, havia coisas a tratar. A P e a M foram escolher o fato, eu fui ligar aos manos que, por acaso não estavam ali. Liguei à Mãe que cansada e totalmente estoirada depois de uma semana de mudança de casa e de estar com o pestinha agarrou nele e fez os 300 kms que a separavam dos filhos. Era preciso tratar da funerária, calhou-me a mim essa tarefa. Missão cumprida. Era preciso vestir a Avó, pintá-la, arranjá-la e lá estava eu a P, a M, a L e a minha Tia a fazer isso. Ficou linda a Avó, todas com a certeza de que à noite já estaria em Las Vegas nas slots.

A Avó faleceu calmamente, como um passarinho onde desejaria. Em casa rodeada de toda a gente e foi assim que toda a família e amigos foram chegando, primeiro a casa e depois à capela. Foi assim até à meia-noite e meia e foi assim na manhã e tarde seguinte até à Missa.

Eu aguentei-me até à soldadura. Aí confesso que me fui completamente abaixo. Nem o abraço da C me conseguiu acalmar. Nada me estava a acalmar. Até que a minha Mãe me avisou que o Senhor Prior tinha chegado. Acalmei imediatamente e fui calmamente com ele e com a P escolher a Leitura e o Salmo da missa. Eu li o Salmo.

Voltei a perder a calma no fim da missa, valeu outra vez o abraço da C que ao ouvido me disse calmamente "Amo-te, sabias?". Agarrei em todas as forças que consegui ir buscar e avançamos para a viagem final.

E lá está a Avó, na cama Alvalade mas com o chachecol do Benfica. Sim, a P foi à Luz comprar um cachecol e a Avó foi com ele. A esta hora está a evangelizar as pessoas em Las Vegas e a explicar que o Benfica é, de facto, o melhor clube do mundo.